Ana Carolina Barbosa[1]
Com o passar dos anos, o enredo do dano moral ultrapassou os limites do dever indenizatório decorrente de acidentes, de cobranças indevidas e de questões essencialmente patrimoniais. Adentrando-se pouco a pouco na sistemática do direito de família, o dano moral passou a fazer parte das relações existenciais. E é nesse ponto que residem as questões acerca do abandono afetivo.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227, traz como dever da família, da sociedade e do Estado, dentre outros, assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, o direito à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
O Código Civil, art. 1.566, IV, por sua vez, ao estabelecer os efeitos do casamento, indica ser incumbência de ambos os cônjuges o sustento, a guarda e a educação dos filhos. Tal dever não se encerra com a separação ou divórcio, conclusão que pode não apenas ser extraída do art. 1.632 do CC/2002[2], mas, também, da obrigação natural de amar.
Diz-se natural a obrigação que “se funda num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça”. Os trechos do Código Civil Português (Decreto-Lei n. 47.344, de 25 de novembro de 1966) nos ajuda a constituir a diferença entre obrigação natural e obrigação civil, conceitos extremamente importantes para entendermos a possibilidade de uma pessoa (criança, adolescente ou adulto) vir a ser indenizada em razão do abandono afetivo por um de seus genitores.
É certo que um juiz não pode obrigar um ser humano a amar o outro. O amor decorre de uma obrigação natural, impossível de ser estabelecida por lei ou ato jurisdicional. O dever de cuidado, no entanto, não está atrelado ao amor. Ele deve existir independentemente da obrigação natural de amar. Quem ama, cuida. Quem não ama, deve cuidar do mesmo jeito.
O dever de cuidado é, portanto, uma obrigação, que compreende sustento, guarda e educação dos filhos[3]. Se José, filho de Antônio e Maria, nasce e cresce sem a companhia de seu pai, que voluntariamente o abandona, não há como afastar a responsabilização pelo não-agir, ou seja, pela omissão deliberada em não cuidar. “O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88”.[4]
Mesmo que não exista expressamente em nosso ordenamento uma norma que obrigue os pais a cuidar dos filhos, há dispositivos legais e constitucionais suficientes para demonstrar que a paternidade precisa ser responsável. Acrescenta-se o art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, que repete o comando constitucional relacionado ao direito à convivência familiar.
A jurisprudência do STJ inicialmente não admitia essa espécie de reparação, sob o argumento de que o amor não é obrigatório. São alguns dos julgados:
ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE. Trata-se de ação de investigação de paternidade em que o ora recorrente teve o reconhecimento da filiação, mas o Tribunal a quo excluiu os danos morais resultantes do abandono moral e afetivo obtidos no primeiro grau. A Turma entendeu que não pode o Judiciário compelir alguém a um relacionamento afetivo e nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a indenização pleiteada. Assim, por não haver nenhuma possibilidade de reparação a que alude o art. 159 do CC/1916 (pressupõe prática de ato ilícito), não há como reconhecer o abandono afetivo como dano passível de reparação. Logo a Turma não conheceu do recurso especial. Precedente citado: REsp 757.411-MG, DJ 27/3/2006. REsp 514.350-SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julgado em 28/4/2009.
AÇÃO. INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS. PAI. FILHO. ABANDONO AFETIVO. A Turma, por maioria, conheceu do recurso e deu-lhe provimento para afastar a possibilidade de indenização nos casos de abandono afetivo, como dano passível de indenização. Entendeu que escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar ou a manter um relacionamento afetivo, que nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a indenização pleiteada. Um litígio entre as partes reduziria drasticamente a esperança do filho de se ver acolhido, ainda que, tardiamente, pelo amor paterno. O deferimento do pedido não atenderia, ainda, o objetivo de reparação financeira, porquanto o amparo, nesse sentido, já é providenciado com a pensão alimentícia, nem mesmo alcançaria efeito punitivo e dissuasório, porquanto já obtidos com outros meios previstos na legislação civil. REsp 757.411-MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 29/11/2005.
Debates doutrinários, especialmente fomentados pelo IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, ajudaram na reformulação desse entendimento. Autores como Maria Berenice Dias, reforçam a necessidade de responsabilização dos pais nos casos de descumprimento do dever legal de cuidado com a prole, suscitando, ainda, que o abandono afetivo pode ter papel pedagógico importante nas relações familiares[5].
Precedente bastante citado é o REsp 1.159.242/SP, de relatoria da MIn. Nancy Andrighi, julgado em 24/4/2012. Para a Ministra, “o abandono afetivo decorrente da omissão do genitor no dever de cuidar da prole constitui elemento suficiente para caracterizar dano moral compensável”. Assim, “o descumprimento comprovado da imposição legal de cuidar da prole acarreta o reconhecimento da ocorrência de ilicitude civil sob a forma de omissão”. A Min. Relatora salientou que, na hipótese, não se discute o amar – que é uma faculdade – mas sim a imposição biológica e constitucional de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerar ou adotar filhos.
Não há, contudo, unicidade sobre o tema. Em julgado mais recente (2017), o Min. Raul Araújo considerou insuficiente para a indenização por dano moral o simples abandono afetivo, desvinculado do desamparo material:
Cinge-se a controvérsia a definir se é possível a condenação em danos morais do pai que deixa de prestar assistência material ao filho. Inicialmente, cabe frisar que o dever de convivência familiar, compreendendo a obrigação dos pais de prestar auxílio afetivo, moral e psíquico aos filhos, além de assistência material, é direito fundamental da criança e do adolescente, consoante se extrai da legislação civil, de matriz constitucional (Constituição Federal, art. 227). Da análise dos artigos 186, 1.566, 1.568, 1.579 do CC/02 e 4º, 18-A e 18-B, 19 e 22 do ECA, extrai-se os pressupostos legais inerentes à responsabilidade civil e ao dever de cuidado para com o menor, necessários à caracterização da conduta comissiva ou omissiva ensejadora do ato ilícito indenizável. Com efeito, o descumprimento voluntário do dever de prestar assistência material, direito fundamental da criança e do adolescente, afeta a integridade física, moral, intelectual e psicológica do filho, em prejuízo do desenvolvimento sadio de sua personalidade e atenta contra a sua dignidade, configurando ilícito civil e, portanto, os danos morais e materiais causados são passíveis de compensação pecuniária. Ressalta-se que – diferentemente da linha adotada pela Terceira Turma desta Corte, por ocasião do julgamento do REsp 1.159.242-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi – a falta de afeto, por si só, não constitui ato ilícito, mas este fica configurado diante do descumprimento do dever jurídico de adequado amparo material. Desse modo, estabelecida a correlação entre a omissão voluntária e injustificada do pai quanto ao amparo material e os danos morais ao filho dali decorrentes, é possível a condenação ao pagamento de reparação por danos morais, com fulcro também no princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal) (REsp 1.087.561-RS, Rel. Min. Raul Araújo, por unanimidade, julgado em 13/6/2017, DJe 18/8/2017).
Em 2018, ao divulgar a 125 ªEdição da ferramenta “Jurisprudência em Teses”, parece ter o STJ adotado a segunda posição. De acordo com a tese, “o abandono afetivo de filho, em regra, não gera dano moral indenizável, podendo, em hipóteses excepcionais, se comprovada a ocorrência de ilícito civil que ultrapasse o mero dissabor, ser reconhecida a existência do dever de indenizar”.
Discussão sempre presente nas decisões sobre o tema envolve a questão do abalo emocional. É necessário, segundo a tese acima, que o abandono ultrapasse o mero dissabor, ou seja, o desgosto, a mágoa, o aborrecimento.
É difícil imaginar uma situação de abandono não seja suficientemente apta a gerar algum abalo psicológico. Em brilhante voto, o Desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, Diaulas Costa Ribeiro, chegou a comparar a situação de abandono à morte:
Quando um pai morre, vítima de um crime, obviamente praticado por terceiro, o filho – nascituro, com pouco tempo de vida ou adulto – tem direito, incontinente, à indenização por danos morais, não ficando a ação suspensa por prejudicial, à espera do resultado do seu desconhecido futuro. O dano moral é in re ipsa porque até os sonhos que temos com quem partiu antes da hora (e sempre há os que partem antes da hora) provam o sofrimento, a angústia e a dor causados pela ausência (…) A mesma lógica jurídica dos pais mortos pela morte deve ser adotada para os órfãos de pais vivos, abandonados, voluntariamente, por eles, os pais. Esses filhos não têm pai para ser visto. Também para eles, “O sonho é o recurso do vidente que nele se refugia a fim de ganhar forças para afrontar o sentido do futuro”. (Fernando Gil, Op. cit.).Também eles afrontam o sentido do futuro e sonham o sofrimento, a angústia e a dor causados pelo desamor do pai que partiu às tontas, quando as malas não estavam prontas e a conta não estava em dia. (Apelação Cível n 0015096-12.2016.8.07.0006, 6º Turma).
Nesse contexto, o fato de ter ocorrido o abandono, mesmo que prestado auxílio material, permite a reparação moral. A assistência financeira não sepulta as demais obrigações decorrentes da paternidade. A propósito, recentemente o Tribunal de Justiça de Minas Gerais condenou um homem a pagar danos morais ao filho oriundo de relação extraconjugal que recebia pensão alimentícia. Para o tribunal, a responsabilidade material foi cumprida, mas o homem, ao se furtar da responsabilidade imaterial, violou o direito à conivência familiar consagrado no art. 227 da Constituição Federal de 1988[6].
Percebe-se que o tema está longe de ser pacífico. Há inúmeras dificuldades não só para estabelecer o dever indenizatório, mas, também, o seu quantum. Penso que não há dúvidas sobre as consequências psicológicas negativas geradas por uma situação de abandono. Entretanto, elas irão sofrer variações conforme os prejuízos individualmente suportados. Não há como medir o sentimento de desilusão paterna (ou materna) com uma régua.
Pode-se falar, então, que há possibilidade de fixação de danos morais pelo abandono. A existência de abalo suficiente para a reparação e a extensão do dano serão analisadas casuisticamente. E há um prazo para que o filho ou filha prejudicado proponha uma demanda para minorar as consequências desse abandono?
A resposta a esse questionamento depende da análise quanto ao reconhecimento da paternidade. Se esta for do conhecimento do autor desde sempre, o prazo prescricional da pretensão reparatória começará a fluir a partir da maioridade do autor da ação. Nesse sentido o STJ, no REsp 1298576/RJ.
A contrario sensu, não é possível falar em abandono afetivo antes do reconhecimento da paternidade, mostrando-se imprescindível a propositura de ação de investigação antes ou concomitantemente ao pleito indenizatório.
De tudo o que se expôs, uma conclusão se mostra inarredável: demandas que envolvem afeto não se resolvem com fórmulas matemáticas, e até mesmo os precedentes judiciais podem não ser suficientes para solucionar relações completamente desconstruídas. Amor, carinho, cuidado, afeto, são sentimentos que soam de forma diferente em cada ser humano. De toda sorte, parafraseando Ana Jácomo, jornalista e escritora brasileira, “o coração humano é feito para o afeto, quer a gente consiga viver ou não esse chamado”.
[1] Sócia do Instituto Prof. Carla Patrícia.
[2] Art. 1.632, CC. A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos.
[3] STJ: REsp 1579021/RS, Rel. Ministra Maria Isabel Galloti.
[4] STJ: REsp. 1159242/SP, Relatora Ministra Nancy Andrighi.
[5] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
[6] Fonte: https://www.conjur.com.br/2019-jul-06/nao-basta-pagar-pensao-tj-condenar-pai-abandono-afetivo.