A proposta desse texto é analisar alguns dos entendimentos dos tribunais pátrios que envolvem diretamente o preconceito e a segregação racial[2].
Inicialmente, esclarece-se que a autora deste texto é branca, privilegiada, e que muito embora tente combater práticas racistas, especialmente com informação/conhecimento, jamais conhecerá a verdadeira dimensão e consequências da opressão racial.
Outra premissa importante e que merece evidência nesse contexto é o fato de que o próprio sistema de justiça se mostra racista a partir de sua composição. Não mais do que 16% dos magistrados do país são negros, apesar da população negra representar, segundo dados do IBGE (2018), um percentual de 56%.
Sob outro olhar, enquanto temos uma limitação de acesso à justiça para pessoas não brancas em razão da histórica desigualdade econômica, cultural, política e social, os percentuais dessa mesma população em estabelecimentos prisionais é estarrecedor. De acordo com o levantamento nacional de informações penitenciárias divulgado em dezembro de 2019 pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), existem 748.009 pessoas presas no Brasil. Considerando que a nossa população atual é de 209,5 milhões de habitantes, esse índice corresponde a 357 presos para cada 100 mil habitantes. A população negra é alvo especial do sistema punitivo, correspondendo a mais de 60% da população carcerária. Tal circunstância, por si só, vai de encontro ao disposto no parágrafo único do art. 3º da Lei de Execução Penal: “Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei. Não haverá qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou política”. Infelizmente essa é mais uma norma “para inglês ver”[3].
A partir dessas premissas básicas é importante analisar alguns aspectos de natureza penal que envolvem a prática de condutas racistas, e quais são as orientações adotadas por nossos tribunais. Não foram encontradas pesquisas que demonstrassem a quantidade aproximada de crimes de preconceito julgados pelo Judiciário brasileiro. Contudo, a partir de uma brevíssima busca na jurisprudência dos tribunais superiores, é fácil notar que mesmo com a quantidade de julgamentos desfavoráveis àqueles que praticam condutas imbuídas dessa espécie de discriminação, não houve proporcional diminuição em relação à quantidade de ataques, especialmente nas redes sociais, às pessoas pretas/negras. Manifestações racistas encobertas por uma distorcida ideia de liberdade de expressão são cada vez mais comuns e recebem constante fomento de grupos antidemocráticos detentores de um verdadeiro arsenal ideológico de dominação.
Nesse sentido, nos parece que a finalidade de prevenção geral não é, por si só, suficiente para o enfrentamento do racismo. É preciso mais – e não necessariamente mais direito penal. Mobilização social, implementação de políticas públicas e sociais, ações institucionais para a redução das disparidades, mecanismos de prevenção e monitoramento do racismo nas esferas pública e privada, além da fiscalização dos meios tecnológicos e conscientização através da informação e da educação, são alguns dos instrumentos que podem auxiliar no combate às práticas racistas e assegurar o respeito e a igualdade étnico-racial.
- Terrorismo x Racismo x Injúria Racial
Especialmente para aqueles que não são da área jurídica, é importante diferenciar os diversos tipos penais que visam punir condutas consideradas racistas. Cada um deles possui uma finalidade e algumas especificidades que deverão ser consideradas a partir das provas obtidas no curso da persecução penal. Vejamos, tecnicamente, a diferença entre eles:
Lei 13.260/2016 | Art. 2º O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.
§ 1º São atos de terrorismo: I – usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa; (..) IV – sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações militares, instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento; V – atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa: Pena – reclusão, de doze a trinta anos, além das sanções correspondentes à ameaça ou à violência. |
Lei 7.716/1989 | Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. |
Código Penal | Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa (…)
§ 3oSe a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: Pena – reclusão de um a três anos e multa. |
O repúdio ao racismo é um dos princípios que regem a República Federativa do Brasil em suas relações internacionais. A partir da prevalência dos direitos humanos, consubstanciada na dignidade humana – vetor fundamental da Constituição de 1988 – o ordenamento jurídico não pode tolerar o racismo. Deve, portanto, impor tratamento jurídico de maior rigor ao seu combate, reprimindo, internamente, práticas consideradas discriminatórias e adotando, em sua política externa, uma agenda de combate ao racismo.
Alexandre Pereira da Silva, em artigo comemorativo do aniversário da Constituição Federal de 1988[4], nos lembra que:
“(…) a prática do racismo também foi repudiada pelos membros da Assembleia Constituinte. Nos termos da Convenção Internacional sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1966), discriminação racial significa “qualquer distinção, exclusão, restrição ou pre- ferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tem por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano, (em igualdade de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de sua vida”. O Brasil é parte desta Convenção desde 1969.Em termos regionais, em junho de 2013, a Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou a Convenção Interamericana Contrao Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância e a Convenção Contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância. Segundo o Itamaraty, os textos foram resultado de longa negociação, iniciada em 2005, quando a Missão Permanente do Brasil junto à OEA apre- sentou à Assembleia Geral projeto de resolução que criou o Grupo de Trabalho encarregado de criar uma Convenção contra o racismo e todas as formas de discriminação, em resposta aos compromissos assumidos pelos Estados da região no processo preparatório da III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em Durban, na África do Sul, em 2011”.
A Lei 13.260/2016, que disciplina o terrorismo, conceitua essa prática em seu artigo 2º, o qual exige, em síntese, a presença dos seguintes requisitos para a sua configuração: (i) uma especial motivação (por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião)[5]; (ii) uma especial finalidade (provocar terror social ou generalizado); (iii) a configuração de uma situação de perigo concreto (expor a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública); (iv) a prática de um dos atos terroristas descritos nos incisos do §1º do art. 2º: “usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa”; “sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações militares, instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento”; “atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa”.
O fato de uma pessoa[6] ou grupo atentar contra a vida de uma pessoa preta/negra, por si só, não caracteriza o crime do art. 2º. Pode, é claro, indicar outro enquadramento jurídico penal, mas para que se configure o terrorista é necessário que haja demonstração da motivação e da finalidade especificadas em lei. “Nunca se deve esquecer que o terrorismo é ato de amplitude de efeitos, que necessariamente deve se apresentar capaz de instaurar um clima de terror generalizado”[7]. O medo e o terrorismo caminham necessariamente juntos.
A Lei 7.716/1989, por sua vez, define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, trazendo em suas disposições diversas condutas consideradas discriminatórias, a exemplo da recusa ou da negativa de acesso a estabelecimento comercial de uma determinada pessoa em razão de sua cor (art. 5º).
Um tipo penal bastante comum – infelizmente – nas decisões dos tribunais brasileiros é o do art. 20 da Lei 7.716/1989. Esse dispositivo pune com pena de reclusão de um a três anos a conduta de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”
Doutrina e jurisprudência defendem que para a configuração deste crime é necessária a presença de um elemento subjetivo do tipo específico, consistente na vontade de discriminar, de segregar, ou seja, de se mostrar superior ao outro ser humano:
“Para a aplicação justa e equânime do tipo penal previsto no art. 20 da Lei n. 7.716/89, tem-se como imprescindível a presença do dolo específico na conduta do agente, que consiste na vontade livre e consciente de praticar, induzir ou incitar o preconceito ou discriminação racial”.(REsp 911.183/SC, Rel. Ministro Felix Fisher, Rel. p/ Acórdão Ministro Jorge Mussi, 5ª Turma, julgado em 4/12/2008, DJe 8/6/2009. No mesmo sentido: AgRg no REsp 1.817.240/RS, Rel. Min Joel Ilan Paciornik, DJe 27/09/2019).
Neste ponto reside a tênue diferença entre a vontade de ofender e a brincadeira. O animus do agente, de natureza subjetiva, ora é considerado como uma mera brincadeira, ora é tido como uma prática torpe merecedora de repúdio. Extraem-se da jurisprudência alguns exemplos:
NÃO É BRINCADEIRA! | |
TJDF Apelação: 0076701-57.2005.807.0001, j. 03/09/2009. | O réu praticou o crime de racismo, de preconceito contra a raça negra, porque, ao fazer críticas ao sistema de cotas adotado pela Universidade de Brasília, escreveu em várias mensagens que divulgou pelo site de relacionamento denominado “Orkut”, da rede mundial de computadores – Internet, que os “negros são burros, macacos subdesenvolvidos, fracassados, incapazes, ladrões, vagabundos, malandros, sujos e pobres”. |
TJRJ Apelação 1520880-5, j. 30/06/2016. | Fala do agente acusado do crime do art. 20 da Lei 7.716/89: “eu só converso com gente decente, e não com gente da sua cor”.
Para o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, a conduta “se enquadra perfeitamente, no tipo do artigo 20 da lei em comento, pois a ofensa diz respeito a um grupo de pessoas, com dolo específico de praticar o preconceito de raça” (Apelação 1520880-5, j. 30/06/2016). |
Há doutrina que sustenta a ocorrência de crime mesmo quando o agente não tem o dolo de ofender. Para Fábio Medina Osório e Jairo Gilberto Schafer, é inadmissível a publicidade de manifestações jocosas, em qualquer de suas formas, versando discriminações e preconceitos vedados pela lei penal. “Por conseguinte, as charges, o sarcasmo, a ironia, piadas, o deboche, configuram instrumentos idôneos à prática, ao induzimento e instigação do ato discriminatório e preconceituoso proibido. Essas manifestações jocosas, aliás, penetram mais sutilmente no inconsciente coletivo, perfectitibilizando o suporte fático da norma proibitiva”[8].
Devo concordar como autores especialmente na conjuntura atual, em que alguns brasileiros utilizam as redes sociais como escudo para a prática de atos discriminatórios, semeando discursos de ódio que não estão protegidos pela liberdade de expressão.
Outro aspecto de relevância na jurisprudência reside na diferença entre o delito anterior (art. 20, Lei 7.716/89) e o crime de injúria qualificada, previsto no art. 140, § 3º do Código Penal.
A conduta tipificada no Código Penal exige “a imputação de termos pejorativos referentes à raça do ofendido, com o nítido intuito de lesão à honra deste” (RHC18.620/PR, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª Turma, j. 14/10/2008). O art. 20 da Lei 7.716/1988 diz respeito, por outro lado, à ofensa a um grupo de pessoas e não somente a um indivíduo. “Não é tarefa fácil diferenciar uma conduta e outra, porém, deve-se buscar, como horizonte, o elemento subjetivo do tipo específico. Se o agente pretender ofender um indivíduo, valendo-se de características raciais, aplica-se o art. 140, § 3º, do Código Penal”[9].
Em suma, podemos concluir que o crime do art. 140, §3º, do Código Penaltutela a honra subjetiva de uma pessoa determinada. A infração penal prevista no art. 20 da Lei 7.716/89 envolve, por outro lado, um sentimento em relação a toda umacoletividade. Assim, uma mesma ofensa com conotação racial pode caracterizar um ou outro delito: se for direcionada à honra de um indivíduo e não tiver objetivo de segregar pessoas em razão da cor da pele, estará configurado o animus injuriandi previsto no tipo do Código Penal. Veja o exemplo:
APELAÇÃO CRIMINAL. INJÚRIA RACIAL. PRESCRIÇÃO. Chamar o ofendido de “negro baderneiro”, “negro bandido” e “negro quadrilheiro” não constitui crime de racismo, mas sim de injúria qualificada(TJRS, Apelação 70026731083 RS, Relatora: Osnilda Pisa, j. 29/01/2013).
Apesar da diferença, as penas são idênticas: reclusão de um a três anos e multa. Entretanto, se o racismo for praticado por intermédio dos meios de comunicação (art. 20, § 2º, Lei 7.716/89), estaremos diante de uma circustância qualificadora e, nesse caso, a pena será de reclusão de dois a cinco anos e multa. Restará, portanto, inviabilizada a aplicação dos institutos previstos na Lei 9.099/95, como a transação penal e a suspensão condicional do processo, pois ausente o pressuposto objetivo (quantum de pena cominada).
- Imprescritibilidade e Insignificância
O artigo 5º, XLII, da Constituição Federal, estabelece que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão. Resta saber se os tipos penais anteriormente abordados estão todos abrangidos pela cláusula de imprescritibilidade.
O inciso XLIII do mesmo dispositivo constitucional, ao tratar do terrorismo, apenas vedou a concessão de fiança, de anistia, graça ou indulto. Não há, portanto, qualquer disposição que permita o processo, julgamento e a execução da pena a qualquer tempo, ainda que o ato de terrorismo tenha sido praticado por razões de preconceito de raça ou cor.
Há, a propósito, Projeto de Lei que objetiva tornar imprescritíveis os crimes hediondos, o tráfico de entorpecentes e o terrorismo (PL Lei 5686/19). Embora alguns doutrinadores entendam que a imprescritibilidade é matéria que deve ser definida pela Constituição, sendo, portanto, necessária a aprovação de proposta de Emenda Constitucional (PEC), o autor do referido projeto argumenta que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 460.971/RS, de Relatoria do Min. Sepulveda Pertence, permitiu a inclusão de crimes no rol da imprescritibilidade por meio de lei ordinária. Nesse julgado o então Ministro do STF afirmou que a Constituição Federal se limitou, no art. 5º, incisos XLII e XLIV, a excluir os crimes que enumera da incidência material das regras da prescrição, “sem proibir, em tese, que a legislação ordinária criasse outras hipóteses”.
Em recente parecer da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organização da Câmara de Deputados sobre o PL 5686/19, registrou-se que “além do posicionamento favorável do STF, o próprio Poder Legislativo intenta, por várias proposições, tornar outras espécies criminais insuscetíveis de prescrição. Dentre outras proposições já arquivadas, estão em tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado Federal as seguintes proposições tratando do tema: as PEC 320/2017, 342/2017, 353/2017 e 75/2019; e os PL 7407/2017, 9459/2017, 185/2019, 4667/2019, 5274/2019 e 5301/2019”[10].
Não há, por enquanto, posicionamento na jurisprudência que admita a imprescritibilidade em relação aos crimes da Lei n. 13.260/2016 e todos os projetos citados ainda estão em fase de tramitação.
Por outro lado, quanto aos crimes de racismo tipificados na Lei 7.716/89, a imprescritibilidade decorre de imposição constitucional (art. 5º, XLII, CF/88). Embora sobre a imprescritibilidade pairem críticas doutrinárias[11], é esse o entendimento que vem sendo adotado pela jurisprudência: p. ex. AgRg no HC 460673/SP, Rel. Min. Rogério Schietti, j. 26/06/2019.
Em relação à injúria qualificada (injúria racial), como ela não está na legislação destinada aos crimes de racismo, alguns doutrinadores entendem que mesmo quando são utilizados elementos raciais para o cometimento do referido delito contra a honra, não há falar em imprescritibilidade. Rogério Sanches Cunha, por exemplo, entende que não há como equiparar os delitos em razão da vedação à analogia incriminadora[12].
Nos tribunais estaduais há posições em ambos os sentidos:
APELAÇÃO. INJÚRIA RACIAL. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. Decorridos mais de dois anos entre as datas do recebimento da denúncia (4 de outubro de 2016) e da publicação da decisão condenatória (30 de outubro de 2018), revela-se extinta a punibilidade do acusado, maior de setenta anos na data da sentença, pela prescrição da pretensão punitiva do Estado, observada a pena concretizada na sentença (um ano e dois meses de reclusão), nos termos das regras contidas nos artigos 107, inc. IV, 109, inc. V, 110, § 1º, e 115, todos do Código Penal. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE DECLARADA. EXAME DA APELAÇÃO PREJUDICADO.(TJ-RS – ACR: 70080636640 RS, Relator: Honório Gonçalves da Silva Neto, Data de Julgamento: 30/05/2019, Segunda Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 21/06/2019). Grifo nosso.
APELAÇÃO CRIMINAL. INJÚRIA RACIAL. PRESCRIÇÃO. INCOMPORTABILIDADE. ABSOLVIÇÃO. INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. PERDÃO JUDICIAL. AUSÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS. CONDENAÇÃO MANTIDA. PENA. REGIME. MANUTENÇÃO. PRESTAÇÃO SERVIÇOS À COMUNIDADE. ALTERAÇÃO. PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA. MULTA. REDUÇÃO IMPOSSIBILIDADE. 1) Com o advento da Lei 9.459/97, que introduziu a denominada injúria racial, criou-se mais um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de reclusão. 2) Comprovada pelas declarações da vítima e das testemunhas inquiridas que a referência à cor da pele do ofendido foi usada como justificativa para as agressões perpetrada durante a atividade laboral desenvolvida naquela oportunidade (porteiro), imperativa a manutenção da sentença que condenou o apelante pela prática do crime de injúria racial. 3) Não restando demonstrado que as ofensas irrogadas à vítima se deram na forma de retorsão imediata, impossível o reconhecimento do perdão judicial. 4) Sem reparos o processo dosimétrico das penas impostas sem bem sopesadas as circunstâncias judiciais, além de respeitados todos os critérios do procedimento trifásico previsto no artigo 68 do Código Penal. 5) Não há que se falar em modificação da pena restritiva de direito de prestação de serviços à comunidade, quando esta atinge as finalidades da pena, de prevenção e repressão do delito, além de ter sido estabelecida dentro do preceito legal. 6) Não se admite a diminuição do valor fixado a título de pagamento de prestação pecuniária, em razão da substituição da pena corpórea por restritivas de direitos, e de multa, haja vista que aplicadas em montante razoável, sendo proporcional à gravidade do delito e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, impondo-se ao Juízo da Execução proceder ao seu parcelamento, caso comprovada a incapacidade financeira do sentenciado. 7) APELO CONHECIDO E DESPROVIDO.(TJ-GO – APR: 01870051720148090175, Relator: DES. NICOMEDES DOMINGOS BORGES, Data de Julgamento: 03/08/2017, 1ª CAMARA CRIMINAL, Data de Publicação: DJ 2337 de 28/08/2017). Grifo nosso.
O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do AREsp 686.965[13], considerou a imprescritibilidade da injúria racial. O Supremo Tribunal Federal, de igual modo, fez uma equiparação entre o racismo e a injúria racial para fins de prescrição. Segundo o Min. Luís Roberto Barroso, acolhendo a doutrina de Guilherme de Souza Nucci, com o advento da Lei n. 9.459/97, que introduziu a denominada injúria racial, criou-se mais um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de reclusão[14].
Os fundamentos de ambas as correntes são razoáveis. Por um lado exige-se expressa previsão pelo legislador e limitação do poder punitivo do Estado; por outro, utilizam-se os fundamentos constitucionais para reprimir com mais veemência as condutas que a consciência histórica não deve mais admitir.
Por fim, se temos algo que pode ser considerado como pacífico é a inaplicabilidade do princípio da insignificância aos delitos já comentados. Embora a pena para a injúria qualificada não seja de grande monta e permita, inclusive, a aplicação dos institutos despenalizadores já citados (transação penal e suspensão condicional do processo) e, ainda, a conversão em penas restritivas de direitos caso haja condenação do agente, entende-se majoritariamente que condutas de cunho racista não podem ser consideradas penalmente irrelevantes. Caso contrário, continuaremos “normalizando” e naturalizando o preconceito, a violência, o ódio e a intolerância. Como de costume, recorro-me ao conterrâneo Bráulio Bessa: “Se não der pra ser amor, seja pelo menos respeito”.
[1] Ana Carolina Barbosa. Especialista em Direito Público. Professora e concurseira.
[2] Embora a expressão “racismo” possa ser utilizada de forma mais abrangente, neste texto está relacionada à mentalidade segregacionista em razão da cor. Utilizam-se também as expressões preto/negro, preta/negra, pois apesar de alguns apontarem que a palavra “negro” denota algo negativo, há quem considere que ela foi ressignificada e que não há ofensa na sua utilização. Ademais, de acordo com o IBGE, a população negra é formada pelo o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas.
[3] Expressão que se encaixa bem neste texto quando utilizada a partir dos ensinamentos da professora Beatriz G. Mamigonian, que na obra “Africanos livres — A abolição do tráfico de escravos no Brasil”, descreve a proibição do tráfico de escravos para o Brasil através de tratados bilaterais assinados entre a Inglaterra e Portugal em 1815 e, depois, entre a Inglaterra e o Brasil em 1826. Segundo a autora, “durante as atividades de repressão ao tráfico, por autoridades brasileiras ou britânicas, foram apreendidos e emancipados aproximadamente 11.000 africanos. Entretanto, estima-se que 760.000 escravos tenham sido importados ilegalmente entre 1830 e 1856” (Dossiê da revista Estudos Afro-Asiáticos (2007 n. 1-2-3).
[4] Revista de Informação Legislativa. Ano 50 Número 200 out./dez. 2013.
[5] “(…) a adequação típica de conduta como terrorismo demanda que esteja configurada a elementar relativa à motivação por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, sob pena de não se perfazer a relação de tipicidade. O uso da expressão “por razões de” indica uma elementar relativa à motivação. De fato, a construção sociológica e a percepção subjetiva individual do ato de terrorismo conjugam motivação e finalidade qualificadas, compreensão essa englobada na definição legal” (STJ, HC 537.118-RJ, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 05/12/2019, DJe 11/12/2019, Informativo 663).
[6] A lei brasileira admite a punição de uma única pessoa pela prática de terrorismo.
[7] CALLEGARI, André Luis. O crime de terrorismo. Livraria do Advogado, p. 37.
[8] Dos crimes de discriminação e preconceito, p. 335.
[9] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais Especiais Comentadas, vol. 1, p. 324.
[10] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=DE502D14415C582141E7BC8EE1C68600.proposicoesWebExterno2?codteor=1846842&filename=Tramitacao-PL+5686/2019.
[11] Sérgio Salomão Shecaira, por exemplo, considera que a imprescritibilidade é um insulto à moderna concepção de justiça e incompatível com o princípio da dignidade da pessoa humana. Ademais, trata-se de medida contrária aos princípios constitucionais da proporcionalidade e da humanização das penas.
[12] Acrescenta o autor a seguinte pergunta: se a injúria qualificada pelo preconceito é imprescritível, como pode depender de representação da vítima, cuja inércia acarreta a decadência? Para ele há incoerência em admitir a decadência e não admitir a prescrição. Fonte: https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2017/11/28/injuria-qualificada-por-preconceito-racismo-prescritibilidade/.
[13] Julgado de 2015, com votação unânime.
[14] AgRg no HC 142.583, j. 31/05/2019.