SÉRIE: DIREITO E PANDEMIA V

PANDEMIA E JURISPRUDÊNCIA DO STF: UM PANORAMA GERAL

Carla Patrícia Frade Nogueira Lopes

            A exemplo do Superior Tribunal de Justiça, o Supremo Tribunal Federal, em tempos de Coronavírus, tem sido provocado a enfrentar questões prioritariamente na esfera criminal. Numa rápida pesquisa de sua jurisprudência em que o critério central é o termo “pandemia”, e o período definido entre março e junho deste ano, são encontrados doze acórdãos. Destes, dez são afetos à área penal/processual penal, e apenas dois julgados podem ser classificados como acórdãos cíveis.

            No campo cível, um dos dois julgamentos do STF (ADPF 671 AgR) revela-se importante e merece atenção destacada dos estudantes, sobretudo daqueles que estão se preparando para concursos de carreiras jurídicas. A questão de fundo envolvia a pretensão de que fosse determinada requisição de todos os bens e serviços de saúde, de modo a disponibilizá-los para o combate da pandemia.

            Pelo menos duas questões debatidas nesse julgado despertarão a atenção dos examinadores dos próximos concursos. O primeiro ponto diz respeito ao principal debate hoje encontrado na comunidade jurídica acerca dos limites do Poder Judiciário no trato das políticas públicas em favor da vida dos cidadãos brasileiras no combate ao Covid-19. Em um momento em que nos deparamos com decisões judiciais conflitantes entre si e com as tomadas de posições de prefeitos, governadores e do presidente da República, o STF reforça sua tese de que ao julgador não cabe substituir-se ao administrador.

            O argumento central da Corte é a violação à separação de Poderes, previsto como princípio fundamental e elevado à categoria de cláusula pétrea (Constituição Federal, artigos 2o e 60, § 4o, inciso III). O interessante do fundamento utilizado pelo STF é o entendimento de que a intromissão do Judiciário nessa questão não só invadiria competência do Executivo, em qualquer de suas esferas – federal, estadual ou municipal – como também estaria a alcançar atuação legislativa.

            Isso porque o legislador já cuidou do tema, ao editar a Lei 13.979/2020 prevendo a possibilidade de requisição de bens e serviços para o combate ao Coronavírus. Mais do que isso, decidiu o STF que a avaliação em torno da existência de “evidências científicas” e “informações estratégicas em saúde” é de exclusiva competência dos gestores públicos. Ocorre que esses são os parâmetros estabelecidos pela lei para que se faça requisição ou se tomem outras medidas de urgência, sempre limitadas no tempo e no espaço. Portanto, quanto ao tema de fundo, a decisão do STF pautou-se na orientação normativa e constitucional de observância do princípio da separação de Poderes.

            Mas há um outro aspecto dessa decisão que pode ser objeto de futuros questionamentos em provas de concurso. É o segundo ponto do julgado em exame. Trata-se de questão formal, ou seja, o reconhecimento da Corte de que a arguição de descumprimento de preceito fundamental, prevista no artigo 102, § 1o, da Constituição Federal e disciplinada pela Lei 9.882/99, não é a via adequada para os objetivos pretendidos. E essa conclusão do STF está assentada na interpretação do § 1o do artigo 4o da lei mencionada, o qual prevê o nominado princípio da subsidiariedade.

            A jurisprudência do STF, nesse tema, não adotou até hoje um critério muito seguro[1]. Em casos semelhantes encontram-se decisões de acolhimento e de rejeição da subsidiariedade no exame dos pressupostos da ADPF. Por outro lado, boa parte da doutrina (André Ramos Tavares, Dirley da Cunha Júnior, para ilustrar) aponta no sentido de que a subsidiariedade é exigida apenas na hipótese de ADPF incidental (Lei 9.882/99, artigo 1o, parágrafo único), mas não se aplica à modalidade autônoma (caput do dispositivo legal citado) dessa ação de controle concentrado de constitucionalidade.

            Temos, pois, que nesse caso destacado (atenção, concurseiros!) duas teses foram determinantes, e o estado de emergência gerado pela pandemia do Covid-19 não foi argumento suficiente para o STF promover eventual distinguish ou overrulling (Código de Processo Civil, artigo 489, § 1o, inciso VI) em relação a seus precedentes. Manteve-se fiel à observância do princípio da separação de Poderes e à exigência de atendimento ao requisito da subsidiariedade da ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental.

 

            Na esfera criminal, como é de esperar-se, o STF foi provocado algumas vezes a posicionar-se sobre pedidos de liberdade ou de prisão domiciliar de detentos em razão da pandemia. Com o mesmo fundamento, foram deduzidos pedidos de revogação de custódia cautelar e de progressão de regime.

            Um primeiro critério estabelecido pela Corte foi a condição do encarcerado de encontrar-se no chamado grupo de risco, que em regra abrange pessoas acima dos sessenta anos e/ou portadoras de comorbidades. A não-comprovação dessa condição foi tomada como primeiro obstáculo para concessão da liberdade. Contudo, a tese mais importante utilizada pelo STF no exame e indeferimento dos pedidos foi a impossibilidade de supressão de instância.Em diversos julgados verifica-se a impetração de habeas corpus contra decisão monocrática de instância anterior (STJ) que, contudo, não foi submetida ao colegiado, a hipótese denominada de habeas corpus per saltum.

            Como decorrência dessas duas premissas estabelecidas pelo STF, uma terceira razão de decidir foi construída no período pesquisado (março a junho de 2020) envolvendo o Covid-19: o pedido de soltura com base na pandemia não comporta conhecimento originário pela Corte. Essa tese foi inicialmente estabelecida na ADPF 347-TPI-MC-Ref, oportunidade em que se definiu a competência do juiz da execução penal para a análise individual de cada preso. Percebe-se, assim, que a pandemia foi também uma oportunidade de delineamento de política judiciária, haja vista parecer mais adequado e eficiente ao juiz de primeira instância decidir sobre a viabilidade de solturas de presos como medida de controle do Coronavírus, dada a proximidade com a individualidade da situação de cada um. Esse mesmo argumento foi utilizado pelo STF para validar a atribuição de presídios em suspender visitas sociais aos presos, igualmente com o intuito de combate à pandemia.

            Ainda nesse âmbito de política judiciária instituída em razão da pandemia, o STF foi provocado a manifestar-se quanto à observância pelos diversos juízos da Recomendação 62/2020 do CNJ no sentido de ser considerada a possibilidade de saída antecipada dos regimes fechado e semiaberto. Quanto a esse aspecto, a Corte ratificou sua tese do descabimento da reclamação originária perante o STF tendo como objeto resolução do CNJ.

            Pode-se concluir, portanto, que em sede de jurisprudência criminal do STF relacionada à pandemia, alguns tópicos poderão ser objeto de cobrança em provas dos concursos futuros (atenção, de novo, concurseiros!): estar no grupo de risco seria uma primeira condição para os presos livrarem-se soltos; contudo, como o habeas corpus, instrumento utilizado à unanimidade perante a Corte para a obtenção de liberdade com fundamento no necessário combate ao Coronavírus, não é meio adequado para apreciação de provas, o juiz da execução penal é o competente para a análise individual de cada preso. Ademais, em termos formais, não se admite, no sistema jurídico brasileiro, a supressão de instância, o que fez o STF decidir que o pedido de soltura com base na pandemia não comporta conhecimento originário pela Corte. Outra decisão de índole processual e confirmatória de tese anteriormente fixada pelos ministros é a do descabimento da reclamação originária perante o STF tendo como objeto resolução do CNJ.

[1]Ver, a título de exemplo, a ADPF 467/MG e a ADPF 423/BA.

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