Imagine o seguinte cenário: em 1901, na Espanha, duas Professoras se apaixonam e se casam na igreja católica. Pode parecer só ficção, mas não é. O lindíssimo filme (2019) “Elisa e Marcela”, da diretora Isabel Coixet, narra essa história que é real e é contada no livro “Elisa e Marcela: alén dos homes”, do espanhol Narciso de Gabriel. Ao perceberem a rejeição da sociedade, as duas amantes criaram um plano para legitimar a relação. Elisa se transformou em Mario, um primo seu falecido; de posse dos seus documentos, foi batizada e obteve a bênção da doutrina católica para, então, casar-se com Marcela. Os comentários da vizinhança, contudo, só aumentaram, até que o casal fugiu para Portugal. A perseguição não parou, as insinuações e ameaças se avolumaram, e as duas foram presas.
Algumas das mais belas cenas do filme mostram os dias em que as protagonistas estiveram presas e se comunicavam por cartas. Em dado momento, uma delas resume o sentimento de quem é alvo constante de ódio e intolerância: “a prisão é boa. É do mundo externo que não gosto.” Apesar de todas as circunstâncias desfavoráveis sob o ponto de vista da moral, à época, Elisa e Marcela foram absolvidas pelo Judiciário. Há um fato inusitado nessa história – na realidade e no filme – Marcela engravidou e teve uma filha em janeiro de 1902; até hoje não se sabe quem era o pai da criança. Livres da prisão, mas presas às rígidas convenções do início do século passado, as duas fugiram mais uma vez, agora com destino à Argentina. No país sul-americano, exerceram o hoje chamado “direito ao esquecimento”: mudaram de nome, encontraram novo trabalho, reconstruíram a vida.
O filme, que traz as atrizes Natalia de Molina (Elisa) e Greta Fernández (Marcela), é passado em preto e branco. Percebe-se a genialidade da diretora no decorrer da trama, em que os papeis de Elisa e Marcela aproximam-se e distanciam-se, como em um vai e vem proposital e que justifica a escolha de duas cores suficientes para mostrar o dualismo nessa história. A luz e a trilha sonora são primorosas e, igualmente, exercem a função de refletir a paixão vista e sentida por duas mulheres, cada qual à sua maneira. Aliás, as cenas de amor entre as duas são primorosas, de extrema delicadeza e de refinado bom gosto. Fica aqui uma provocação: as atrizes e as personagens são muito parecidas fisicamente. Para realçar as semelhanças, o figurino, os cabelos, a maquiagem, as tomadas de cenas, tudo contribui para que o espectador perceba a semelhança entre Elisa e Marcela. Há uma razão sutil e encantadora para que isso seja destacado no filme. Vale conferir!
Ah!… um detalhe: o casamento de Elisa e Marcela, na vida real, nunca foi anulado.
*Texto originalmente publicado no @vamos.falardefeminismo