Direito ao Esquecimento e Ressocialização

           

                                                                               Ana Carolina Barbosa

 

            O direito ao esquecimento começou a ser discutido a partir de casos emblemáticos submetidos à jurisdição Alemã. O “caso Lebach”, por exemplo, colocou em discussão a dificuldade do processo de ressocialização quando, mesmo após a aplicação da pena, permitiu-se a transmissão de filme sobre os fatos ocorridos e respectivos envolvidos. A permissão foi posteriormente revogada pela Corte Constitucional.

            A propósito do episódio, colaciona-se as palavras de Gilmar Ferreira Mendes, para quem “(…) a divulgação posterior de notícias sobre o fato é, em todo caso, ilegítima, se se mostrar apta a provocar danos graves ou adicionais ao autor, especialmente se dificulta a sua reintegração na sociedade. É de se presumir que um programa, que identifica o autor de fato delituoso pouco antes da concessão de seu livramento condicional ou mesmo após a sua soltura ameaça seriamente o seu processo de reintegração social” [1].

            Ainda na Alemanha, costuma-se fazer referência ao caso de Wolfgang Werlé e Manfred Lauber, que junto com o direito ao esquecimento provocou (e ainda provoca) discussões sobre os limites das informações perpetuadas pela internet.

            Na Suíça, em 1983, o Tribunal Federal Suíço ponderou, em um caso envolvendo a Sociedade Suíça de Rádio e um familiar de sentenciado à pena de morte, que embora os fatos históricos não possam ser apagados, o esquecimento naturalmente pode ser reduzido ou eliminado pelas mídias eletrônicas.

            No Brasil, o “caso Doca Street” pode ser utilizado como marco, mesmo sem a referência expressa ao termo “esquecimento”[2].

            Outros casos concretos discutidos na Espanha, Bélgica, Itália e França são marcos jurisprudenciais do direito ao esquecimento, posteriormente debatidos pela doutrina nacional e internacional. No Estados Unidos, o artigo “The right to privacy”, de Samuel Dennis Warren e Louis Dembitz Brandeis, é um dos artigos iniciais que que trata do direito ao isolamento (the right to be let alone) como desdobramento fundamental do direito à privacidade e que pode ser considerado como marco para as discussões sobre a necessidade de desvinculação do indivíduo dos acontecidos que lhe são imputados após um determinado período de tempo.

            Na doutrina brasileira, cita-se o exemplo do Professor Titular de Direito Civil da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Anderson Schreiber. Para o autor, “(…) o direito ao esquecimento não é um direito de impedir análises ou comentários sobre fatos ou acontecimentos relevantes para a memória de um povo. Insurge-se, muito ao contrário, contra a individualização do fato sobre uma determinada pessoa, ainda viva, que tem direito “a não ser implacavelmente perseguida por fatos do seu passado” (Stefano Rodotà, Intervista sulla Privacy), se isso, objetivamente, puder comprometer a realização da sua personalidade” [3]

            Os temas que envolvem o direito ao esquecimento possuem enorme relevância para o processo de ressocialização, especialmente quando analisados a partir da vedação constitucional às penas de caráter perpétuo e da cultural e midiática estigmatização daqueles apenados que cometeram crimes de grande repercussão.

            A reforma e a readaptação social dos condenados é direito a ser protegido por todos os Estados signatários da Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica. No Brasil, particularmente, a Constituição da República não faz qualquer ressalva quanto aos destinatários dos direitos fundamentais, circunstância que nos remete ao ideal segundo o qual o direito à privacidade, à intimidade e, consequentemente, à dignidade numa perspectiva pós-positivista, deve ser estendido à todos os cidadãos, inclusive aos que cometem e são responsabilizados por crimes que possuem alguma relevância e/ou comoção histórico-social.

            Nesse ponto é útil a adaptação da Teoria da Ressocialização de Liszt, abordando o direito ao esquecimento não como uma premissa absoluta e insuscetível de convivência com o direito à memória, mas como uma necessidade inerente à ressocialização do apenado de, finalmente, não ser lembrado por fatos que, de acordo com a lei brasileira, já foram objeto de punição sob o crivo do devido processo legal.

            Em uma visão filosófica da hermenêutica, o ser humano assume o centro das discussões. O apenado, como titular de direitos fundamentais e um ser dotado de sentimentos e expectativas, não deve ser utilizado indiscriminadamente como fonte histórica, sob pena de permanecer eternamente como um pária.

            A exposição midiática é, inclusive, objeto de tratamento na Lei de Execução Penal. De acordo com o art. 198, é defesa ao integrante dos órgãos da execução penal, e ao servidor, a divulgação de ocorrência que perturbe a segurança e a disciplina dos estabelecimentos, bem como exponha o preso à inconveniente notoriedade, durante o cumprimento da pena.

            Não se pode negar que existe, de fato, um conflito entre direitos fundamentais. Não podemos nos esquecer da importância que alguns fatos têm para a construção da narrativa social. Por outro lado, não podemos nos afastar do ideal da ressocialização numa visão mais pragmática, desvinculada de concepções exclusivamente morais. Não se desconhece que a memória coletiva é importante para a criação de uma identidade social, mas certamente ela é capaz de conviver com a memória individual na medida em que a historicidade não for suficientemente relevante, nem capaz de justificar a reconstrução do passado.

            Necessário, portanto, estabelecer um limite quanto ao uso de informações de processos judiciais, notadamente pela mídia que, a depender da narrativa, é capaz de “sensacionalizar” uma única vida humana, inviabilizando por completo a reinserção de determinados apenados ao trabalho e ao convívio social. A propósito,a estigmatização de determinados casos indica a escolha de uma memória de cunho essencialmente ideológico, desvinculada das finalidades da pena e que sujeita o cidadão responsabilizado criminalmente a um sofrimento por tempo indefinido.

            Em países nos quais se admite penas de caráter perpétuo, é orientação da Corte Européia que tais penas sejam revistas periodicamente. No Brasil, constitucionalmente não há possibilidade de prisão perpétua (art. 5º, XLVII, “b”, CF/1988), mas a pena em si, como meio de coerção estatal, acaba perdurando sem qualquer limitação. Fomenta-se, dessa forma, a reincidência penal e o direcionamento do direito penal brasileiro aos ideais do direito penal do autor e da teoria do etiquetamento.

            Circunstância diversa se vislumbra nos casos submetidos à julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, relacionados ao acesso por jornalista à arquivos da época da Ditadura Militar (Reclamação n. 11949/RJ, de relatoria da Min. Carmén Lúcia, Plenário do STF, julgada em 15/03/2017). Neste ponto o direito à informação tende a ser privilegiado, porque não se busca individualizar uma determinada conduta, mas retornar a um marco histórico de suma importância para a compreensão dos dias atuais.

            É relevante compreender que há pelo menos três correntes doutrinárias acerca do direito ao esquecimento. A primeira, nega a existência desse direito, tornando o direito à informação absoluto e instransponível. A segunda, aceita sem ressalvas o direito ao esquecimento, propondo, inclusive, prazos para a remoção de conteúdos de caráter pessoal da internet. A terceira corrente doutrinária tenta conciliar, por meio de exercícios de ponderação, o direito ao esquecimento e a liberdade de informação.

             A partir dessa terceira corrente podemos pensar na possibilidade de compatibilizar propostas já internalizadas no ordenamento jurídico de países da Europa continental com a realidade brasileira, sem que para isso se tenha que promover alterações no texto constitucional. Como desdobramento do direito à privacidade, expressamente consagrado no art. 5º, X, da Constituição Federal de 1988, ou mesmo do direito à identidade pessoal, derivado da cláusula geral de tutela da dignidade humana, o direito a ser esquecido – ou de não ser constantemente e desnecessariamente lembrado -, pode ser incorporado como direito fundamental inerente à perspectiva ressocializadora da pena.

            Tal objetivo ressocializador foi recentemente incorporado em legislação infraconstitucional, na qual se estabeleceu a ressocialização como princípio da Política Nacional de Trabalho no âmbito do Sistema Prisional (PNAT), e como objetivo desta Política “proporcionar, às pessoas privadas de liberdade e egressas do sistema prisional, a ressocialização, por meio da sua incorporação no mercado de trabalho, e a reinserção no meio social” (art. 4ª, I, do Decreto n. 9.450, de 24 de julho de 2018).

            Nota-se o incentivo à reinserção inclusive dos que já cumpriram a pena, mas ainda necessitam ser assistidos pelo Estado, que agora cumpre papel não mais de órgão punitivo/executor, mas de garantidor de direitos fundamentais, como é o direito ao trabalho (art. 6º, caput, CF/1988), de inegável importância para a (re)construção do indivíduo.

            Não há dúvidas de que o resgate incessante das razões da pena cria um ambiente de odiosa segregação, o que, de certa maneira, contribuiu para a intangibilidade do ideal da ressocialização, tonando perpétua a estigmatização provocada pelo cárcere.

            No âmbito cível, especialmente após a entrada em vigor do Código Civil de 2002, o princípios inerentes à dignidade humana tomaram forma e conteúdo através dos estudos proporcionados pelas Jornadas de Direito Civil, a exemplo dos Enunciados 531 e 576, das VI e VII Jornadas, respectivamente: “A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”; “O direito ao esquecimento pode ser assegurado por tutela judicial inibitória”.

            Durante as referidas Jornadas, registrou-se que a tutela do direito ao esquecimento não consiste em atribuir a alguém o direito de apagar fatos passados ou reescrever a própria história. Em verdade, não se quer vedar o direito à informação, mas, tão somente, o superinformacionismo.

            Sobre o tema, agora na seara criminal, o Superior Tribunal de Justiça veiculou em uma das edições da “Jurisprudência em Teses”, o seguinte enunciado: “quando os registros da folha de antecedentes do réu são muito antigos, admite-se o afastamento de sua análise desfavorável, em aplicação à teoria do direito ao esquecimento”.

             Neste ponto é importante considerar que o mesmo tribunal, em sua maioria, adota a teoria da perpetuidade, de modo a considerar que mesmo após o decurso do prazo depurador da reincidência, a condenação anterior transitada em julgado servirá para a caracterização dos maus antecedentes, permitindo, portanto, a  majoração da pena na primeira fase da dosimetria (REsp 1.666.294/DF, julgado em 05/09/2019).

            O enunciado na “Jurisprudência em Teses” é aplicável, segundo a Corte, em hipóteses excepcionais, quando já decorrido tempo razoável. Há julgados que tratam de penas cumpridas há 18, 20, 30 anos.

            Deve ser registrado, ainda, o posicionamento do STF, que ao contrário do STJ, vem aprofundando a tese de que a superação do quinquênio depurador deve afastar tanto a incidência da circunstância agravante (reincidência) quanto o aumento fundamentado na circunstância judicial (maus antecedentes), pois não se pode admitir que uma condenação anterior tenha efeitos perpétuos e contrarie o propósito, demonstrado pelo legislador nas regras da reincidência, de apagar da vida do indivíduo as faltas passadas. A 2ª Turma do STF tem seguido este entendimento: Nos termos da jurisprudência desta Segunda Turma, condenações pretéritas não podem ser valoradas como maus antecedentes quando o paciente, nos termos do art. 64, I, do Código Penal, não puder mais ser considerado reincidente. Precedentes. II – Parâmetro temporal que decorre da aplicação do art. 5°, XLVI e XLVII, b, da Constituição Federal de 1988. III Ordem concedida para determinar ao Juízo da origem que afaste o aumento da pena decorrente de condenação pretérita alcançada pelo período depurador de 5 anos (HC 142.371/SC, j. 30/05/2017)”. A mesma tese foi sustentada no HC n. 119.200 e HC n. 110.191. Ressalte-se que o Min. Edson Fachion alterou seu entendimento ao julgar o HC 152239/SC, demonstrando que a temática é polêmica. De toda forma, percebe-se que o direito ao esquecimento é tema necessariamente vinculado à dignidade e, consequentemente, ao ideal ressocializador.

            Mais recentemente, em Informativo divulgado no dia 22 de maio de 2020 (Informativo 670 – REsp 1.736.803-RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, DJe 04/05/2020), o Superior Tribunal de Justiça, por decisão unânime, mesmo reconhecendo expressamente que a exploração midiática de dados pessoais de egresso do sistema criminal configura violação do princípio constitucional da proibição de penas perpétuas, do direito à reabilitação e do direito de retorno ao convívio social, garantidos pela legislação infraconstitucional, nos arts. 41, VIII e 202, da Lei n. 7.210/1984 e 93 do Código Penal”, considerou inviável o acolhimento da tese relativa ao direito ao esquecimento, sob o argumento de que esses direitos citados não são absolutos e que há evidente interesse social no cultivo à memória histórica e coletiva de delito notório”.

            Percebe-se, portanto, que há precedentes tanto favoráveis ao esquecimento na esfera penal, quanto indicativos de que a tese não deve prevalecer. As dúvidas a que se propõe o enfrentamento e a reflexão são: quem escolhe qual a narrativa deve prevalecer e por quanto tempo? O que se considera “crime de grande repercussão social” e “delito notório”? Quem escolhe quais são esses fatos? Há razões para que determinados crimes bárbaros sejam esquecidos e outros não? Quem são os apenados que não podem ser esquecidos? Quem os escolhe?

            As práticas criminosas são, na maioria das vezes, veiculadas pela mídia de maneira imprudente e sensacionalista. “São eleitas como objeto de exploração e se potencializam ao serem divulgadas pelos meios de comunicação, causando um clamor público desmedido.”[4]

            Além disso, ao reavivar insistentemente casos que já não possuem interesse essencialmente público, seja porque já serviram de exemplo para os demais cidadãos – prevenção geral – ou porque tantos outros casos posteriores e semelhantes tomaram conta do imaginário popular e da mídia, perpetua-se o exercício do jus puniendi e reacende-se o sentimento de repúdio social, circunstâncias que vão de encontro ao postulado da dignidade da pessoa humana.

            “Denota-se  que  “não  ser lembrado”,  “ser  esquecido”  faz  parte  do  conceito  de  dignidade  humana,  eis  que  muitas  vezes  as  lembranças  e  as  recordações trazem  sofrimento e dor, e nem sempre possuem justificativas aceitáveis ou perdoáveis pelo  próprio  “eu”,  e  tudo  o  que  se  quer, é o direito  de  recomeçar,  melhor  dizendo,  “começar de novo”, pois o recomeço parte daquilo que já passou e o começar anula  o passado que possa ter existido, mesmo que apenas na  mente, mas não na alma de  seus partícipes” [5].

            A vexação pública ad infinitum não fere, portanto, apenas a esfera íntima dos(as) apenado(as) e egressos(as) do sistema prisional, mas também o ideal comum segundo o qual “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” (art. I, da Declaração Universal dos Direitos Humanos).

                  Precisamos (re)pensar essas questões de acordo com os limites que a Constituição estabelece, sem esquecer do fato de que somos todos sujeitos de direitos.

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Bibliografia:

[1] MENDES. Gilmar Ferreira; BRANCO. Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 12 ed. São Paulo. Saraiva, 2012, p. 389.

[2] http://www.oabsp.org.br/sobre-oabsp/grandes-causas/o-caso-doca-street

[3] Disponível em:http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/direito-ao-esquecimento-criticas-e-respostas/17830.

[4] MELLO, S. L., A violência urbana e a exclusão dos jovens. In: B. B. SAWAIA (Org.), As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 116.

[5] PIRES, MixiliniChemin; FREITAS, Riva Sobrado de. O direito à memória e o direito ao esquecimento: o tempo como paradigma de proteção à dignidade da pessoa humana. Unoesc International Legal Seminar, Chapecó, v. 2, n. 1, 2013, p. 163.

 

Outras referências:

 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. tradução: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.

ALVIM, Marcia Cristina de Souza. Ética na informação e o direito ao esquecimento. In:

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade (da pessoa) humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988.

CONSALTER, Zilda Mara. Direito ao esquecimento: proteção da intimidade e ambiente virtual. Curitiba: Juruá, 2017.

FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e comunicação. 3. ed. Porto Alegre: S.A. Fabris, 2008.

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