Continuando a série “Direito e Pandemia”, abordaremos na postagem de hoje uma questão envolvendo, especialmente, as disciplinas de Direito Tributário e Direito Administrativo. O tema não é novo, mas ganhou nova roupagem com a pandemia e poderá ser objeto de questionamentos em provas.
Veja a questão elaborada pela equipe do Instituto e o respectivo espelho:
QUESTÃO: O Poder Público Municipal, após a realização de procedimento licitatório, celebrou contrato com empresa privada para o fornecimento de alimentação aos alunos da Rede Municipal de Ensino de Campo Grande/MS. Com o avanço da pandemia de Covid-19, as aulas na rede municipal e também da rede estadual foram suspensas, mas a Secretaria de Saúde exigiu que a empresa continuasse a fornecer os gêneros alimentícios diretamente aos pais ou responsáveis dos estudantes das escolas públicas, com ônus para a contratada, providência que, segundo a contratada, era inviável.
Diante do impasse, a empresa contratada ajuizou ação contra o Município pretendendo a recomposição dos preços do contrato e, ainda, autorização para retardar o pagamento dos tributos municipais incidentes sobre sua atividade, em especial o ISS, como forma de garantir a manutenção dos contratos de trabalho de seus empregados durante a pandemia.
Partindo da situação hipotética apresentada, analise os pedidos da empresa à luz da teoria da imprevisão, abordando, necessariamente, a sua aplicabilidade ao contrato administrativo e à relação jurídica tributária.
ESPELHO: A teoria da imprevisão ocorre nos casos em que há uma situação fática não prevista quando da celebração do contrato que venha alterar o seu equilíbrio econômico-financeiro. José dos Santos Carvalho Filho (Manual de D. Administrativo, 33ª Edição) explica que a teoria da imprevisão é aplicável aos contratos administrativos, com fundamento no artigo 65, II, “d”, da Lei de Licitações:
Art. 65. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos:
II – por acordo das partes:
d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de conseqüências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual.
No caso do enunciado, é possível notar o desequilíbrio, em especial porque a distribuição dos alimentos diretamente aos pais ou responsáveis será mais onerosa para a contratada, exigindo-se, assim, a recomposição dos preços ajustados.
A situação evidencia a ocorrência do chamado “fato do príncipe”, porquanto a suspensão das atividades escolares determinada pelo Município foi realizada de forma geral e abstrata, sem vinculação propriamente com o contrato, mas que atingiu diretamente a relação contratual.
Poder-se-ia cogitar a existência, nesta situação, de “caso fortuito“, porquanto a suspensão das atividades somente ocorreu em razão da pandemia, cujo surgimento não foi evidenciado por uma atuação estatal, embora os entes tenham responsabilidade na adoção de ações de vigilância e controle epidemiológico.
Adotando uma ou outra posição (fato do príncipe ou caso fortuito), é necessário ponderar a possibilidade de revisão do preço para reestabelecer o equilíbrio contratual.
Quanto à aplicabilidade do “fato do príncipe” à relação tributária, o aluno poderá abordar este ponto de forma mais livre, porquanto não há resposta completamente correta.
Recentemente, em Vara Federal do DF, um juiz decidiu pela aplicação desta teoria, autorizando, excepcionalmente, pelo prazo de três meses, contados de cada vencimento, o diferimento do recolhimento de tributos federais como forma de garantir que determinada empresa mantivesse integralmente os seus postos de trabalho.
Para o magistrado, a teoria indicada, inerente ao D. Administrativo, deve ser aplicada ao D. Tributário. É claro que, partindo de uma interpretação essencialmente legalista, não há como permitir tal providência, pois os artigos 152 e 153 do CTN são taxativos em assegurar que somente o titular do poder de tributar poderá conceder moratória tributária, bem como que ela exige a edição de lei específica.
Sugerimos a leitura da decisão indicada, disponível em: https:// www.conjur.com.br/dl/juiz-df-aplica-teoria-fato-principe.pdf, assim como dos artigos seguintes:
https://www.conjur.com.br/2020-mar-27/uso-tributario-fato-principe-inedito-analisam-advogados